Acho que preciso dizer algumas palavras sobre jazz. Comecemos pela sua história, que não apenas é fantástica como estrapola epicamente o campo da música. Resumindo grosseiramente...
No início de seus dias, que foi pouco depois do fim da escravidão negra nos Estados Unidos do Poder Branco na segunda metade do dezenove, já havia um secular germe musical poderoso, que também era mais que simples música, que seria a base do blues e depois do jazz. Eram as worksongs (ou canções de trabalho). Ainda trabalhando duro nos campos de algodão, ou onde quer que fosse, os negros entoavam essas melodias que davam o ritmo de seu trabalho. O ritmo é sem dúvida o elemento mais importante da música de matriz africana (polirritmias eram praticamente inexistentes na música ocidental), e sua beleza e funcionalidade eram preservadas na cultura dita negra, de origem africana. Mas essas canções, como disse, eram mais que isso. Falavam da realidade vivida, cotidiana, experienciada desse povo e estavam indissociavelmente ligadas ao trabalho, elemento central dessa mesma realidade. Isso é muito diferente da concepção de música que temos hoje amplamente difundida e da qual o próprio jazz faz parte. Muito diferente, inclusive, de sintonizar o rádio numa estação popular e cantarolar os hits do momento para fazer faxina, embora alguns aspectos, como a distração psicológica, já deviam então estar envolvidos. É bem possível que, como alguns dizem, o efeito último disso fosse a conformação ao sistema econômico¹. Worksongs, nesse caso, eram uma válvula de escape. Vou pesquisar sobre worksongs no Haiti e ver o que descubro a respeito. É sabido que já existiam na África e também eram cantadas nas nossas lavouras coloniais. Entre os makonde da colônia portuguesa do Mozambique, as letras insultavam os senhores e feitores que vigiavam o trabalho, geralmente depreciando seus atributos sexuais, sem que os mesmos entendessem do que se tratava. Na colônia portuguesa do Brasil, essas canções foram germe do samba de maneira mais ou menos análoga.
Então, quando esses ex-escravos tornaram-se trabalhadores livres e (mal) assalariados, aí sim, a música foi passando gradativamente para os domínios do divertimento popular, com sua própria economia e mercado, que incluíam o surgimento de músicos profissionais, bares, etc. A música negra - assim chamada porque essa parte da população estadounidense vivia segregada em todos os sentidos, e com sua cultura não era diferente - retrabalhou aquelas antigas canções de trabalho e criou o blues. A partir dele e de alguns hibridismos com danças de matriz européia, na transição dos dois séculos, surgiu o jazz. Devo ter pulado algumas etapas, mas, grosso modo, é isso.
Agora, avançando de novo mais um pouquinho no tempo, vem a parte triunfal da história. Ela está diretamente relacionada ao processo de massificação da cultura. O século XX, como sendo o do apogeu da industrialização e urbanização, quando ocorre a grande virada dessas sobre o campo e a economia tradicional, por meio de algumas evoluções técnicas, industrializou e disponibilizou para consumo urbano também a música. A partir do recrudescimento dessa distribuição, através da gravação e radiofonização e venda de discos e tal, a música quebraria algumas barreiras, como a geográfica e, principalmente, a de classe (não sem resistências e contradições, ou seja, luta). Os brancos, a classe média particularmente, passaram a ouvir jazz, se comover com o jazz, dançar o jazz. Não demorou para surgirem, aproveitando essa oportunidade, os músicos brancos de jazz. Nem é preciso dizer que em uma sociedade como aquela, em que o racismo é, até hoje, hegemônico (o que não quer dizer absoluto), foram esses músico que inicialmente colheram os frutos do sucesso, principalmente o mais doce e nutritivo deles, the money. Não quer dizer que não pudessem fazer jazz, pelo contrário, por si só isso já era uma tremenda vitória. Menos ainda, que só os negros poderiam fazê-lo com propriedade. Cultura não é algo natural, não está no sangue ou na essência das pessoas (se é que isso existe). Se aprende, se ensina, se transmite, se compartilha. Prova disso é que houveram tanto bons músicos brancos nessa época (acho que Benny Goodman é o melhor exemplo), como ruins (Glenn Miller é a encarnação máxima do oportunismo que deixei subentendido).
Claro que o dinheiro, o sucesso, eram motivos suficientes para o ressentimento. Ao longo do século passado, a música e o cinema tornaram-se progressivamente alguns dos abrigos preferenciais desses elementos. Mas nesse período, ainda fortemente marcado pela opressão racial, o orgulho ferido de um povo oprimido deve ter falado mais alto. Era inaceitável que uma música de origem negra estivesse sendo explorada dessa forma, em detrimento dos seus criadores. Aí surgiu a vanguarda do jazz. O bebop foi o pontapé inicial. O objetivo implícito era transformar o jazz numa música de tal maneira complexa que só seus praticantes negros integrante desse restrito círculo cultural que se materializava pudessem tocar. O resultado foi a expressão musical mais revolucionária, mais soberba, mais exuberante, mais foda, enfim... sou suspeito pra falar. Mas o processo não estancou por aí. Veio o cool, veio o free, o avant-garde, uma evolução atrá da outra, um desenvolvimento contínuo. E esse foi, sem sombra de dúvidas, seu maior triunfo. O jazz foi, muito provavelmente, a maior prova coletiva da capacidade intelectual do negro e, assim sendo, a mais profunda contestação material das idéias racistas. De fato, o jazz engajou-se dessa e de várias outras maneiras na luta pelos direitos civis. Esse sucesso - o melhor dos sucessos: o sucesso histórico, revolucionário - viria logo.
1. Para os antimarxistas de plantão, sempre vasculhando atrás do suposto reducionismo econômico do inimigo, refresquemos seu ponto de vista lembrando que os escravos, além de serem, em primeiro lugar, trabalhadores (muito mais do que os trabalhadores-consumidores de hoje), eram uma propriedade. Se isso não condicionava substancialmente suas vidas, então não sei mais de nada (ou ao menos de nada que realmente importe).
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1. O jazz é a única música viva. Nele, é a música que se curva ao momento vivido pelo ser humano e não o contrário. A palavra improvisação, geralmente associada ao jazz, é incompleta para entender o que quero dizer. Ela privilegia demais o aspecto técnico da música e esquece-se a função da arte: comunicar (arte pela arte? aqui não!). A técnica é apenas um pormenor da linguagem. Ah, mas comunicar o que, se a música é instrumental? Pode ser que seja uma linguagem abstrata, mas é! Quer mais do que o poder que a música tem de comunicar os sentimentos?! O domínio da técnica, das notas músicais, do tempo, etc., durante uma improvisação instrumental se compara ao domínio das palavras durante uma fala improvisada. Quanto maior o domínio, mais acurada é a comunicação.
O grande problema da comunicação (não é um problema, é sua própria natureza) é que não se faz com uma pessoa só. O grande efeito colateral da vanduarda é o afastamento do grande público. Mas estou certo de que a culpa não é da vanguarda, que deve continuar existindo sempre, e sim do grande público manipulável e dos poucos que tem os meios para poder manipulá-lo. O ideal seria que todos tivessem mente aberta suficiente para aprender com tudo e acompanhar as evoluções propostas pelas vanguardas, evoluir junto e até superá-las (tornando-se vanguarda também). Por isso o jazz, infelizmente, também é sinônimo de música minoritária, especializada...
2. No jazz, a interpretação individual tem um significado mais verdadeiro. Os standards, canções clássicas que tornam-se referência e passam a ser interpretadas por diversos artistas, confere a essas diferentes interpretações um significado especial. É interessante notar que essas canções geralmente tem letras e a maior parte de suas interpretações são instrumentais. O conhecimento dessa letra e a expressão de seu significado e dos sentimentos que envolvem por parte do músico são, por isso, pré-requisito para uma boa interpretação. O instrumento tomará o lugar da voz e terá de falar de forma até mais enfática que a primeira, que conta com as facilidades proporcionadas pelas palavras para tal intento. A interpretação é também bem diferente do que acontece em outros gêneros musicais. Na música erudita, a interpretação de um maestro e de uma orquestra para os temas clássicos não têm espaços para o acréscimo de idéias, para adaptações, liberdades individuais que a improvisação possibilita. É o que tá escrito e pronto. No roquenrou, as chamadas versões muito raramente superam suas originais, sendo mais um subterfúgio para o sucesso fácil ou simplesmente uma escapatória para o déficit criativo. No jazz, a superação é quase uma regra, visto que a reinterpretação é mais que prevista, é cuidadosamente pensada nos termos de sua contribuição ao tema original.
3. O seu instrumental preferêncial é perfeito e fez escola. O jazz teve grande influência, nos seus inícios, da banda marcial. Fiquei embasbacado quando descobri que nos seus primóridos, a função hoje exercida pelo baixo era dada pela tuba. Tudo passou a fazer sentido. Também a bateria como conhecemos hoje, um conjunto de tambores e pratos, não por acaso, surgiu em Nova Orleans. Combinando os dois instrumentos, estava inventada a cozinha musical. Com o acréscimo do piano, que se juntou ao jazz em suas passagens pelos bórdeis, os instrumentos de sopro ocuparam a frente da música, representando o papel da voz. Do roque ao funk carioca, a música com toda a certeza não seria a mesma sem o jazz.