quinta-feira, 24 de setembro de 2009

PANEGÍRICO DO DESENHO

"Só sei desenhar palitinhos!"
82,59 % dos elogios dirigidos aos meus desenhos.


Costuma-se pensar o desenho como um dom, algo que uns têm outros não. Nunca acreditei em dom (talvez porque isso reduziria meu mérito pessoal enquanto desenhista, patife egocêntrico). Tudo bem, fato é que uns dominam uma técnica de representação da realidade através do desenho mais apurada que outros. Isso não é dom, no sentido de habilidade inata ou dádiva divina¹, é prática.

No meu caso, favoreceu à prática contínua e sistemática (nem tanto assim) do desenho o gosto pela coisa. Se praticamente toda criança regozija-se com suas hidrocores, alguma coisa se passa no meio do caminho. Talvez em determinado momento os resultados imediatos não cumpram as suas expectativas. Aí nesse instante, muito provavelmente, crêem não ter "recebido o dom". Ou ainda, na trajetória atual do ser humano, plurifurcada de sucessivas limitações rumo às especializações buro/tecno/plutocráticas, um semovente consciente da igualdade inata do desenvolvimento humano, porém, prudente deve ponderar a certa altura: "desenhar pra que se não dá dinheiro?"; decide então não perder mais seu tempo com aquilo, "time's money!". Infeliz sensatez...

Participei há alguns meses de uma oficina da Pré-Bienal ministrada por uma espécie de "messias" do desenho, o colômbiano Nicolas Paris². Em dizendo isso, posso ter induzido à imagem mental de um ancião vestindo uma bata descolada fazendo apóstolos entre artistas moderninhos. Não tanto. Trata-se na verdade de um gurizão que faz um trabalho de base em escolas para conscientizar professores de todas as disciplinas dos benefícios do desenho como instrumento pedagógico. Entre seus cânones está um conceito de desenho como materialização e prática do pensamento.

A técnica de desenho já foi lição escolar. Os métodos educacionais e a concepção restrita dessa técnica eram equivocados, claro, e provavelmente por isso despejaram o fedelho junto com a água do banho. Seus usos, entretanto, não se encerram em sí mesmo, sendo útil à abstração e compreensão de todas as matérias escolares. Pode ajudar a combater disgrafias e dislexias (bem como a hiperatividade correlata). Pra não dizer que o desenho é todo milagroso, ressalvo que na pior das hipoteses ele ameniza ou torna mais eficiente esse "processo civilizador de conformação dos corpos e mentes" que é a escola.

Reparem que não falei ainda em arte, nem vou². Aqui só iria atrapalhar mais do que já atrapalha essa noção por mais vezes autoritária que funcional. Proponho que todos pratiquem o desenho. Exprimam suas idéias através dele. (Se quiserem se considerar artistas nessa prática, ótimo). Porque se não há sempre um risco de que o próprio pensamento vire palitinhos.

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O desenho que abre a postagem (que quase nada tem a ver com o texto) foi realizado na oficina por proposição do oficineiro como um interessante exercício de desenho de anatomia humana, proporcionalidade e, claro, criatividade. Aí vai um link do cara: http://www.galerialuisastrina.com.br/artists/nicolas-paris.aspx?page=21

1. Sobre o caráter cristão do conceito de dom, há uma experiência pessoal que me marcou. Quando fiz minha confirmação luterana tardiamente, lá pelos 16 anos de idade, tivemos uma aula só sobre dom, com o estagiário da igreja (fígura muito peculiar, diga-se de passagem). Lá pelas tantas, citou o seguinte exemplo de dom: numa indústria, uns tem "dão" de mandar, e outros tem "dão" pra tampar garrafas. Fiquei imaginando o pobre coitado na linha de montagem blasfemando contra o maldito "dão" que recebera. Felizmente, em mim essa ética protestante que prepara o espirito pro capitalismo nunca colou (ou ao menos espero que assim seja).
2. Pensando bem, isso me lembrou outra personagem intrigante, uma colega da referida oficina. Professora de arte do ensino básico, disse que seu objetivo na mesma era aprender a desenhar (notem que era uma oficina de uma tarde... professora de arte) pois seus aluninhos sempre pediam que ela corrigisse as deficiência em seus desenhos e ela por seu turno não se sentia segura pra tanto. Tão cedo não vou entender a idiossincrasia daquela senhora.